segunda-feira, 23 de julho de 2012

"Doutores"

Um fato, no mínimo, engraçado é quando se entra para a faculdade de medicina, os familiares já começam a fazer perguntas, brincadeiras, os amigos e até mesmo os desconhecidos idem. E mais real e engraçado ainda é o status que o estudante de medicina possui no meio social, mesmo que ainda esteja no primeiro período...

Sempre tive muito contato com pessoas mais humildes/de baixa renda. E não só o carinho e a fidelidade que elas têm pelos que as tratam com respeito e afeto chama a atenção, mas também a forma como se colocam submissas a estes que elas consideram superiores. Assim que cheguei de férias no interior de Goiás fiz algumas visitas com meus pais, dentre elas, fomos comer um frango caipira na casa simples de uma família muito querida pela minha. Fui recebida com abraços calorosos, perguntas de como está a faculdade e tratada como “Doutorinha”. Sempre respondo que não precisa falar assim, até mesmo porque, atualmente, ainda faltam 5 anos e meio para eu ser uma médica generalista, fora o tempo de residência e outros estudos. Só que as pessoas insistem no vocativo, e argumentam da seguinte maneira: “ah, mas você tem que ir se acostumando, e agora vai ser nossa Doutora né?!”.

No fundo, porém, eu entendo que isso é cultural, uma tradição. Apesar de contestar o vocativo, acho bonito quando bem empregado, porque é uma forma de prestígio, de orgulho que sentem por quem conseguiu "chegar lá". Não o acho necessário, entretanto, não fico contestando a todo o momento quem assim me chama, até mesmo para não causar algum constrangimento ou evitar mágoas. Nesse momento nada melhor do que sorrir, acenar e receber de mente aberta esse "elogio"!

Muitos estudantes de medicina acham-se melhores do que os outros somente por cursarem medicina. O que também é cultural, afinal, as turmas de medicina são as que têm as formaturas mais esbanjadoras e caras (coitados dos meus pais) desde o início dos tempos, o curso mais caro, o curso de mais prestígio e o mais aclamado pela sociedade. Porém, até que ponto isso é necessário? Concordo que medicina é um curso magnífico, lindo, tanto que o escolhi para ser meu futuro, ao mesmo tempo é difícil, duro e cruel. Para quem ama de verdade, o retorno de todo o trabalho é o melhor e mais esperado, acredito que poucas coisas são melhores do que receber um sorriso sincero após salvar uma vida ou auxiliar no bem estar da pessoa, do que um abraço verdadeiro ou do que ganhar um pote de doce de presente – como ainda acontece no interior. Ah, sim, esqueci-me do dinheiro não é mesmo? Pois é, muitos estudantes ainda são ingênuos ao ponto de entrar para a faculdade acreditando veementemente de que sairão ganhando rios de dinheiro, esquecem-se do propósito da medicina, do juramento de Hipócrates, do objetivo humanitário e, principalmente, do quanto terão que “ralar” para conseguir essa quantia que tanto almejam. Um médico só ganha rios de dinheiro logo no início se tiver muitas influências e QI (quem indica), e olhe lá ainda! E mesmo assim, de qualquer maneira, terá que trabalhar mais do que imaginava que fosse capaz de aguentar, terá que enfrentar inúmeros plantões e adversidades, ou seja, terá que esperar para construir/fazer reconhecerem seu nome, que não passa da consequência do seu trabalho.

Estudantes de medicina são apenas estudantes, como outros quaisquer. Estão no mesmo barco dos estudantes de farmácia, biomedicina, fisioterapia, odontologia, direito, letras, música, engenharias e tantos outros cursos, pois estão todos aprendendo e fazendo acontecer para concretizarem seus sonhos, para no final poderem se orgulhar do canudo que encontrarão em suas mãos. Cursar medicina não os torna diferentes de ninguém, muito menos mais inteligentes ou melhores. Portanto, privilégios não se fazem necessários. Não é por estudarem medicina que são superiores do que os outros. Em termos informais, acho ridículo quem se acha melhor, o dono da verdade por estar cursando medicina. E entendo que é a própria sociedade que constrói, conserta e reforma esse pedestal para os estudantes, afinal, vivencio isso.

Essa história começa da tradição cultural presente na infância. Nasce uma criança e os pais já dizem: "esse(a) será nosso(a) futuro(a) Doutor(a)!". Incrustam na cabeça das crianças de que a melhor e maior profissão que existe em todo o mundo é medicina. Felizmente, medicina não é a melhor, muito menos a maior, é apenas uma dentre tantas profissões que move o mundo, a humanidade. Na verdade, ela só é a melhor e a maior para quem é capaz de amá-la com toda a verdade e a sinceridade que existe em seu coração. Enquanto adolescentes, na fase de escolha da profissão, soma-se a cobrança que surge por parte das escolas e cursos pré-vestibulares. Segundo a maioria dessas instituições, medicina é o melhor e maior curso também, já que quanto maior o número de aprovações em medicina maior a publicidade e maior o retorno financeiro para elas. Como podemos perceber, ainda hoje as pessoas possuem essa ideia deturpada sobre a medicina, pois ainda hoje as pessoas tratam diferente os estudantes de medicina e os médicos propriamente ditos, e enquanto houver esse tratamento diferenciado, haverá quem faça de tudo para ter um filho médico, mesmo que forçosamente a partir de ideias errôneas e vergonhosas.

É incrível a vaidade de muitos estudantes de medicina. São capazes de deixar de fazer algo ou achar que os outros o devem fazer por ser um futuro médico. Repletos de “não-me-toques” e frescuras. Acham-se, ainda, no direito de enfrentar tudo e todos. Também acreditam que o mundo inteiro deve saber que eles estudam medicina. Alguns insistem mesmo cursando os períodos iniciais do curso em sair dizendo "sou médico". Vale ressaltar que o número de estudantes de medicina que estão na faculdade ou no curso pré-vestibular em busca dessa vaga devido ao retorno financeiro e status social é, geralmente, maior do que o número de quem cursa medicina por aptidão e amor. E isso se torna cada vez mais claro à medida que conheço estudantes de medicina em faculdades particulares. Ah, ainda existem aqueles que só estão seguindo essa carreira porque os pais, os avôs, os tios e os primos também o fizeram, como se a aptidão passasse de geração a geração...

Dessa forma, constato que o estudante de medicina têm razões socioculturais para engrandecer a si próprio, ao contrário, também constato que a criação que os pais dão ao filho faz toda a diferença. Devo dizer que ao longo desse tempo e da minha trajetória também conheci pessoas indescritíveis, de enorme capacidade para amar a profissão, os estudos e os seres humanos, até mesmo porque, se a pessoa não gosta do ser humano, não devia ser médica.

Enfim, cursar medicina é indescritível, como qualquer realização de sonho, porém, isso não me torna melhor do que os demais, pelo contrário, me torna cada vez mais e mais humana - em seu sentido positivo -, mais e mais aprendiz. E não é por cursar medicina que vou exigir que me atendam melhor, que me garantam privilégios, que me chamem de doutora, visto que doutora só serei quando concluir um doutorado. Ser médico não significa ser melhor do que os outros ou ter privilégios, significa amar ao próximo de tal maneira que você seja capaz de doar-se a ele. Porque para mim medicina é doação, enquanto não houver doação por parte do médico não haverão ótimas consultas, ótimos tratamentos e pessoas saudáveis. Medicina é realmente para poucos, lamentavelmente muitos "poucos" não merecem, mas quem merece deve lutar até o fim, porque eu acredito - como paciente e como estudante - que são esses que fazem a diferença.

Um comentário:

  1. Eu sei que é bem antiga sua post.. Mas.. Achei muito interessante suas palavras. Pessoas como você me causam admiração. E, concordo com absolutamente tudo o que falou! Sério. Namoro um estudante de medicina, desses que "se acham" sabe?! E eu só não o deixo por que acredito que ele possa se tornar uma pessoa melhor, e por amá-lo. Eu sei que estudantes de medicina passam a maioria do tempo estudando.. Mas quando eu falo que quero terminar o relacionamento, por não ter o minimo de atenção, ele vai logo dizendo "Arruma um vendedor, desses aí qualquer, ou um taxista talvez seja mais feliz".. Sinceramente, apesar de tudo sou feliz com ele. E se eu não fosse, não exitaria em deixá-lo, e ficar com um "taxista" que me fizesse feliz. Sou do tipo de pessoa que não se importa com dinheiro, status, ou o curso que a pessoa faz (ou não fez/faz) pra mim, o que importa é a dignidade, carater, e a forma de como a pessoa enxerga a vida realmente. As vezes tenho duvida quanto ao meu relacionamento. Atualmente, passei para farmácia, estou só esperando o curso começar, e ele vive jogando na minha "cara" que eu não faço nada, que se eu estudasse onde e como ele estuda eu não falaria tanta besteira. Talvez eu possa estar errada em cobrar um pouquinho mais de atenção. Mas ninguém tem o direito de humilhar alguém por profissão, curso ou por quanto dinheiro a outra pessoa tem. E pra mim, medicina é como você fala, só merece estudá-la quem realmente tem amor pelo que vai fazer. Abraços.

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