domingo, 12 de dezembro de 2010

Sobre Moluscos e Homens - A realidade do vestibular

SOBRE MOLUSCOS E HOMENS 
Rubem Alves

"O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto sofrimento, tanta violência à inteligência. Piaget, antes de se dedicar aos estudos da psicologia da aprendizagem, fazia pesquisas sobre os moluscos dos lagos da Suíça. Os moluscos são animais fascinantes. Dotados de corpos moles, seriam petiscos deliciosos para os seres vorazes que habitam as profundezas das águas, e há muito teriam desaparecido se não fossem dotados de uma inteligência extraordinária. Sua inteligência se revela no artifício que inventaram para não se tornarem comida dos gulosos: constroem conchas duras e lindas (que os protegem da fome dos predadores)! Ignoro detalhes da biografia de Piaget e não sei o que o levou a abandonar seu interesse pelos moluscos e a se voltar para a psicologia da aprendizagem dos humanos. Não sabendo, tive de imaginar. E foi imaginando que pensei que Piaget não mudou o seu foco de interesse. Continuou interessado nos moluscos. Só que passou a concentrar sua atenção num tipo específico de molusco, chamado "homem". Muito nos parecemos com eles: nós, homens, somos animais de corpo mole, indefesos, soltos numa natureza cheia de predadores. Comparados com os outros animais, nossos corpos são totalmente inadequados à luta pela vida. Vejam os animais: eles dispõem apenas do seu corpo para viver. E o seu corpo lhes basta. Seus corpos são ferramentas maravilhosas: cavam, voam, correm, orientam-se, disfarçam-se, comem, reproduzem-se. Nós, se abandonados apenas com o nosso corpo, teríamos vida muito curta. A natureza nos pregou uma peça: deixou-nos, como herança, um corpo molengão e inadequado, que, sozinho, não é capaz de resolver os problemas vitais que temos de enfrentar. Mas, como diz o ditado, "é a necessidade que faz o sapo pular". E digo: é a necessidade que faz o homem pensar. Da nossa fraqueza surgiu a nossa força, o pensamento. Parece-me, então, que Piaget, provocado pelos moluscos, concluiu que o conhecimento é a concha que construímos a fim de sobreviver. O pensamento, mais que um simples processo lógico, desenvolve-se em resposta a desafios vitais. Sem o desafio da vida o pensamento fica a dormir... O pensamento se desenvolve como ferramenta para construirmos as conchas que a natureza não nos deu. O corpo aprende para viver. É isso que dá sentido ao conhecimento. O que se aprende são ferramentas, possibilidades de poder. O corpo não aprende por aprender. Aprender por aprender é estupidez. Somente os idiotas aprendem coisas para as quais eles não têm uso. É o desafio vital que excita o pensamento. E nisso o pensamento se parece com o pênis. Não é por acidente que os escritos bíblicos dão ao ato sexual o nome de "conhecimento"... Sem excitação, a inteligência permanece pendente, flácida, inútil, boba, impotente. Alguns há que, diante dessa inteligência flácida, rotulam o aluno de "burrinho"... Não, ele não é burrinho. Ele é inteligente. E sua inteligência se revela precisamente no ato de recusar-se a ficar excitada por algo que não é vital. Ao contrário, quando o objeto a excita, a inteligência se ergue, desejosa de penetrar no objeto que ela deseja possuir.
Os ditos "programas" escolares se baseiam no pressuposto de que os conhecimentos podem ser aprendidos numa ordem lógica predeterminada. Ou seja: ignoram que a aprendizagem só acontece em resposta aos desafios vitais no momento (insisto na expressão "no momento"; a vida só acontece "no momento") da vida do estudante. Isso explicaria o fracasso das nossas escolas. Explicaria também o sofrimento dos alunos, a sua justa recusa em aprender, a sua alegria ao saber que a professora ficou doente e vai faltar... Não há pedagogia ou didática que seja capaz de dar vida a um conhecimento morto.
Acontece, então, o esquecimento: o supostamente aprendido é esquecido. Não por memória fraca; é esquecido porque a memória é inteligente. A memória não carrega conhecimentos que não fazem sentido e não podem ser usados. Ela funciona como um escorredor de macarrão. Um escorredor de macarrão tem a função de deixar passar o inútil e guardar o útil e prazeroso. Se foi esquecido, não fazia sentido. Por isso acho inúteis os exames oficiais (inclusive os vestibulares) feitos para avaliar a qualidade do ensino. Eles produzem resultados mentirosos por serem realizados no momento em que a água ainda não escorreu. Eles só diriam a verdade se fossem feitos muito tempo depois, depois do esquecimento haver feito o seu trabalho. O aprendido é aquilo que fica depois que tudo foi esquecido... Vestibulares: tanto esforço, tanto sofrimento, tanto dinheiro, tanta violência à inteligência... O que sobra no escorredor de macarrão, depois de transcorridos dois meses? O que restou no seu escorredor de macarrão de tudo o que você teve de aprender? Duvido que os professores de cursinhos passem nos vestibulares. Duvido que um professor especialista em português se saia bem em matemática, física, química e biologia... Eles também esqueceram. Duvido que os professores universitários passem nos vestibulares. Eu não passaria. Então, por que essa violência sobre os estudantes?

Ah! Piaget! Que fizeram com a sua sabedoria? É preciso que os educadores voltem a aprender com os moluscos..."

(Folha de S. Paulo, Tendências e debates, 17/02/2002)


Rubem Alves, 68, educador, psicanalista e escritor, é professor emérito da Unicamp, autor de "A Escola com que Sempre Sonhei sem Imaginar que Pudesse Existir" (Papirus), entre outros. www.rubemalves.com.br


Tive o prazer de ler esse texto no blog do Kárcio Sángeles (Palco da Mente), e como uma estudante no curso pré-vestibular não poderia deixar de comentar e também me apropriar da idéia e aqui postar. Digo prazer porque não é todo dia que nos deparamos com textos tão bem escritos e colocados a respeito do vestibular, do sistema escolar, poucos tem essa capacidade de opinar, de se expressar, se posicionar de uma maneira crítica diante de tal assunto.

Nessas últimas semanas e já há muito tempo presenciamos notícias de professores ou alunos agredidos e alguns tem a morte como fim. Essa, infelizmente é a nossa realidade. Não digo que é tudo culpa do nosso “sistema”, do governo, da escola, dos pais, mas digo que é culpa de toda a sociedade, que deixa criminosos ficarem impunes, que aceita tudo o que nos é imposto passivamente, que não tem a iniciativa de numa simples ação tentar modificar o mundo ao seu redor, que é tida como espectadora diante de todas as adversidades que acontecem no nosso país, que é dona de uma inércia, desde mental à fisiológica, que é egoísta e só tem olhos para o próprio umbigo, que não dirige o olhar ao próximo e deixa que haja uma invisibiladade social discriminadora e totalmente prejudicial a nós. Enfim, não adianta tentarmos sempre achar um único culpado, uma vez que são vários os culpados que formam “brutamontes” soltos por aí.

Apaticamente assistimos a tudo, calados, como se nada estivesse nos atingindo, assim como no Jornal Folha de S. Paulo foi publicado que a nossa ditadura foi “ditabranda”. Como?!! Li certo? E para as famílias que tiveram filhos, pais, parentes assassinados? Será que para elas existiu ditabranda? E quem teve que se exilar, longe da sua terra natal? Percebe-se, nesse caso, que quando não nos atinge diretamente não nos importamos, até que chegue a nossa família, aos nossos conhecidos próximos, então brigamos, nos revoltamos, fazemos passeatas, discursos e vamos em defesa. Será que sempre teremos que esperar que os “problemas” nos atinjam para agirmos?

Mas...voltando ao assunto principal: vestibular! Quando era criança, meus pais já diziam - não sei se por “pressão psicológica” ou por realmente acreditarem que isso seria possível – que deveria manter boas notas no boletim, pois, quando chegasse minha vez, não existiria mais vestibular, e sim, seriam aprovados os que tivessem um bom desempenho no histórico escolar, portanto, seria analisada toda a vida escolar do estudante. Na realidade vejo isso como um método meritocrático. Certo? Pode ser que sim, mas estaria mais de acordo com meus pensamentos do que o vestibular de hoje em dia. Uma prova que testa não só o conhecimento, mas quem é o mais rápido, quem sabe controlar o “psicológico”, quem tem maior apoio familiar e escolar. E o maior problema é que muitas vezes os outros fatores pesam muito mais que o principal, que no caso seria o conhecimento. Entretanto, nas condições em que se encontra nosso sistema escolar, nossas escolas e sistema defasados, não teríamos condições de analisar o histórico escolar de todos, pois haveria desvantagens, uma vez que “passar de ano” numa escola de boa qualidade é mais difícil que numa escola desqualificada, despreparada, de nível menor que exigiria menos do aluno. Assim sendo, enquanto não houver equivalência entre os institutos educacionais esse método não poderá ser instaurado.

Talvez essa mesma idéia esteja prevalecendo em relação às ações afirmativas (ou cotas). Acredito que essa seja uma tentativa de colocar em “igualdade” estudantes preparados em níveis diferentes. Um exemplo são os pontos de corte dos vestibulares, para o curso de Medicina na UFG (Universidade Federal de Goiás) o ponto de corte para os de sistema universal foi 62 e para os negros foi 30. Como se sentirá esse aluno negro ao entrar na universidade com uma turma composta de mais da metade com pessoas – querendo ou não é a verdade - mais aptas, com notas maiores, que poderão estar mais acostumadas com o ritmo de estudo necessário? Sem contar na discriminação que estão sujeitos a enfrentar. Sei de caso de um aluno negro que ingressou no curso de Medicina na UFG e no segundo semestre foi reprovado por não conseguir manter boas notas e bom ritmo de estudo, ao contrário dos outros. Porém, creio ainda, que o preconceito aumenta com as cotas, pois é a mesma coisa de dizer que os outros não tem condições de competir, se esforçar e tirar uma boa nota por mérito próprio, é também, afirmar que o ensino público não tem qualidade, é uma tentativa de consertar os erros cometidos no início. Por que não investir na educação de base? Por que não propiciar maior aparato ao ensino fundamental, ensino médio público? Por que continuar no “jeitinho brasileiro” de sempre deixar as coisas para depois e tentar consertar na frente, quando o prejuízo já está causado e é maior?

Concluindo, faço das palavras de Rubem Alves as minhas. Nunca tinha pensado, nem sequer chegado perto, a essa comparação entre homens e moluscos. O que de certa forma abriu a minha cabeça, pois é a realidade que enfrentamos cotidianamente. Assim como a necessidade nos faz pensar, é ela que também nos faz enfrentar a vida de cabeça erguida, nos faz estudar acima do considerado normal, etc. E, pensando melhor, o que nos faz agir ou estagnar só depende da necessidade! E agora, vejo como necessidade uma mudança por completo em nosso sistema educacional - e digo isso não só por estar pensando em mim, mas por pensar em todos e no futuro do país. Podemos ter evoluido, mas diante do mundo e das necessidades no nosso país ainda estamos a desejar, é preciso muito mais para que sejamos um país desenvolvido. Para mim não importa sermos uma das maiores economias se as crianças que são o futuro (perdão pela frase clichê, mas nesse contexto enquadra-se perfeitmente...) da nação não terão condições de assumir postos de comando, ser mão de obras qualificadas, e aí, que rumo terá todo esse progresso em mãos despreparadas? É por essas e outras que vemos casos de violência, de erros médicos, de negligências, roubos, etc. Se o nosso país já tem essa condição de ser uma grande potência, imagina se tivéssemos políticos honestos - sem corrupção, empenhados em melhorar o Brasil que investissem prioritariamente na educação e na saúde? Se assim o fosse, com certeza teríamos um "Brasil - País de todos", pois hoje, ainda não é a realidade!

10 comentários:

  1. Olá, Letícia! Mais um texto primoroso de sua pena. Eu teria muito a dizer e daria para ficarmos a semana toda aqui falando sobre esse tema. Mas uma coisa que você disse que quero me concentrar nela, pois para mim está a raiz de maior parte de nossos problemas: o ensino básico. Todos os esforços governamentais, de pais e escolas particulares deveriam se voltar para resgatar o peso maior que deve ter essa fase na formação das crianças. Hoje, o ensino está mais voltado para instrumentalizar as pessoas para "se virarem" no mundo do trabalho do que qualquer outra finalidade. Criou-se um sistema de aparentes oportunidades, mas a prática socio-econômica ainda é a do "salve-se quem puder". Brilhante a sua análise. Meu abraço e uma ótima semana. paz e bem.

    ResponderExcluir
  2. Oi Cacá, é sempre um prazer te receber por aqui!
    Com certeza existem vários assuntos por trás de tudo o que escrevi ontem, tive que me concentrar e policiar pra não ficar maior do que já ficou, minha prolixidade é difícil de ser controlada! haha
    Sim, um exemplo dessa instrumentalização é o curso técnico, não que eu seja contra, até apoio a ideia, mas não estão levando em conta que essas pessoas estão se dirigindo ao técnico por falta de condições em outros campos, inclusive a falta de condições para cursar uma universidade...
    Abraço, ótima semana pra você também!
    Letícia.

    ResponderExcluir
  3. Você provoca, não é? Temas fantásticos para discussão, e como o Cacá já discutiu uma parte, vamos às outras.

    Primeiramente, a questão de cotas, o que acho abominável. Independente de qualquer discurso ou argumento que se use, essas cotas continuarão elitistas, pois o negro com poder aquisitivo baixo jamais conseguirá competir por essas vagas, as quais serão dirigidas para aqueles negros de poder aquisitivo maior. Essa questão não deve ser tratada de forma racial, mas sim social.

    Questões de ensino básico. Só teremos uma elevação na qualidade, quando a classe pedagógica se der conta de que o que mais se precisa, é desenvolver a visão crítica nos alunos. O ser humano é movido a ação e reação, onde a crítica é a ação, e o raciocínio e argumento sobre a crítica é a reação. Mas, ao contrário disso, impõe-se sobre os alunos vários quilos de informação, e tudo como se fosse uma verdade absoluta. Mas, não é. Educar deveria ser uma via de mão dupla, uma troca de informações.

    E quanto aos cursinhos pré-vestibulares, os comparo às auto-escolas. Um lugar onde você aprende o "jeitinho" de passar num teste. Nunca achei o vestibular algo justo. Mas, na ausência de um sistema melhor, vamos convivendo, não é?

    Temas propícios para muita discussão. Perfeito.

    Abraços, Letícia.

    Marcio.

    ResponderExcluir
  4. Parafraseando um versículo bíblico que diz: "Julgai todas as coisas, retende o que é bom", eu diria que devemos aprender um pouco de tudo o que pudermos e reter o que é "útil e prazeroso", conforme sonha Rubem Alves. Até porque o que é útil para alguns pode não ser para outros; e o que é prazeroso para alguns pode não ter a menor graça para outros. Portanto, querer moldar os programas educacionais às necessidades individuais de cada aluno é pura utopia.
    Letícia, mesmo com todo o meu respeito por Rubem Alves, achei o seu texto bem mais consistente que o dele. Beijo.

    ResponderExcluir
  5. Este comentário foi removido pelo autor.

    ResponderExcluir
  6. O texto é muito pertinente para o momento e com certeza a escola hoje está muito longe do ideal de Piaget.

    Acredito como diz o texto que o conhecimento é nossa casca de molusco, o que nos faz sobreviver ...

    Bom Letícia, aproveitando, da uma passadinha no meu blog ,tem um presentinho pra vc lá.


    Beijão

    ResponderExcluir
  7. É Marcio, são temas relevantes, principalmente para mim, acho que por isso coloco em debates! rs
    No quis diz respeito às cotas, acho que minha opinião já ficou clara por aqui, sou contra, e mais uma vez concordo com suas palavras!
    Agora no que toca a educação, nas escolas públicas não sei a quantas anda, mas nas particulares, ao menos nas que eu já estudei, o aluno sempre foi levado a discussões, os professores abrem espaço para debates, críticas, enfim, há uma troca de informações sim, posso te garantir! rs
    E discordo outra vez da sua opinião sobre os cursinhos, rs, para passar no vestibular além do "jeitinho" é necessário conhecimento, e muitos cursinhos - quando digo sobre isso o meu espaço amostral é Goiânia - sabem e nos passam tudo isso. Agora que o modelo de vestibular atual é ultrapassado e que a gente apenas vai "convivendo" estou de acordo!
    Mas, enfim, com certeza é um tema que gera muitas discussões, então vou parando por aqui, senão faço outro "post" nos comentários! rsrs
    Abraços Marcio, obrigada mais um vez!
    Letícia.

    ResponderExcluir
  8. Olá Crisálida!
    Então, acredito que também seja uma grande utopia, mas é muito interessante esse pensamento. E ainda tem outra visão, aquela de que devemos saber de "tudo um pouco", e sou completamente a favor desse pensamento. É muito importante você conhecer de tudo, percebo que os melhores profissionais são aqueles que conhecem sobre o mundo, são atualizados, enfim, o conhecimento é de suma importância para toda a vida.
    Obrigada pelo carinho!

    Oii Carla!
    E sim, o conceito Piaget ainda fala de algo que não passa de um "ideal"...rs
    Pode deixar que vou "pegar" meu selinho lá!
    Muito obrigada pela consideração, lembrança e carinho!

    Beijinhos,
    Letícia.

    ResponderExcluir
  9. Parabéns por cada um que escreveu,o texto.
    A nossa escola um dia mudará ? Teremos verdadeiramente escolas que ensiná, ou apenas diplomas? Agradeço este texto me enriqueceu muito.

    ResponderExcluir
  10. Oi Letícia estou iniciando minha graduação em pedagogia..seu texto foi muito esclarecedor pra mim.. parabéns..espero poder escrever assim um dia...por enquanto tenho muita dificuldade em colocar as palavras certas..que fazem sentido... espero uma dicas suas..bjs

    ResponderExcluir

Então, o quê você me diz?