sábado, 21 de maio de 2011

Um brilho no olhar

Consequência de uma pausa...
Tema: Os espaços urbanos das grandes cidades e a qualidade de vida.

Acordei atordoado, sequer soube reconhecer onde me encontrava. Não conseguia abrir meus olhos, nem me mexer, o que me deixou desesperado. Comecei a ouvir uns barulhos típicos de hospital e algumas vozes a minha volta, embora não soubesse distinguir as pessoas. Falavam em tom de preocupação e seriedade, imaginei que fossem médicos. Tentei me recordar como fui parar ali, mas, fui interrompido por uma visita.

Minha filha sentou ao meu lado e começou a conversar. Minha maior vontade era poder dizer o quanto a amava – há quanto tempo não dizia isso! - e perguntar o que estava acontecendo comigo. Sentia-me como uma criança indefesa, necessitada de colo e carinho. Percebi que ela se perguntava, com tristeza, como tudo tinha acontecido, como eu deixei chegar àquele ponto. Desse modo, fui recuperando minha memória a respeito de como estava agindo nos últimos anos.

Lembrei-me de quando a mãe dela ainda era viva e morávamos no interior de Goiás. Tínhamos nossa casa simples e confortável, conhecíamos todos os vizinhos e todas as semanas havia reuniões entre amigos. Não raro, no fim da tarde, sentávamos na porta de casa e ficávamos observando o movimento da cidade, que não era muito. Nos finais de semana íamos à fazenda, cavalgávamos e pescávamos. Também deixávamos que as crianças se esbaldassem na terra fofa. Incrível como todos se conheciam, se respeitavam, eram cordiais e estavam dispostos a ajudar uns aos outros. A cidade não tinha uma estrutura das melhores e estava longe de ser sinônimo de progresso, mas ainda assim proporcionava muita alegria aos moradores, ninguém queria se mudar. Entretanto, depois de receber uma ótima oferta de emprego, mudei junto de minha família para a capital.

Passamos a morar em apartamento, cercados por grades e câmeras de segurança. Os únicos que sabiam de nossa existência e rotina eram os porteiros, nem mesmo conhecíamos nossos vizinhos. Minha mulher começou a trabalhar e nossos filhos ficavam o dia inteiro por conta de empregados, escola e atividades extracurriculares. Quando chegava a noite queríamos apenas dormir e descansar. Não havia mais diálogo, muito menos família unida. Agora cada um tinha sua vida, sua rotina, seus amigos.

Após três anos morando em Goiânia senti os sinais da velhice se aproximando. Estava sempre cansado, sem fôlego, estressado, ansioso e dormindo pouco. O cigarro e a poluição faziam parte de mim e agravavam a situação do meu sistema respiratório. Tinha parado de caminhar e tornado um exímio sedentário.

Recordei-me, então, de um dos maiores sufoco pelo qual passei. O dia em que colidi com outro carro. Estava com muita pressa e com sono. Ao menos assumi a responsabilidade, o que não evitou xingamentos, desrespeito e quase agressão. Foi nesse dia que sofri meu primeiro enfarto. Dei-me conta de que esse não foi o único episódio em que me descontrolei. A briga no supermercado, a discussão com o síndico, as buzinadas no trânsito, o mau cheiro no prédio devido à grande quantidade de lixo, os empurrões na fila do banco, a briga com meu filho por causa das festas, bebidas e companhias, a morte da minha mulher e, por fim, o assalto.

De súbito lembrei-me porque estava na unidade intensiva. Fui assaltado e reagi, não esperava que ele fosse capaz de atirar em mim. Por um segundo acreditei que ainda estivesse no interior do estado e que fosse possível resolver os problemas apenas com uma conversa. Realmente, nossa vida tornou-se insignificante, assim como inúmeros valores foram deturpados e perdendo sentido.

Os médicos voltaram acompanhados dos meus filhos. O efeito do tratamento não estava sendo satisfatório. Para eles, era como se eu já estivesse morto. Percebi que eles choravam e se despediam de mim. Meu desejo era poder abraçá-los e pedir desculpas por todos os erros cometidos. Uma aflição terrível tomou conta de mim. Tinha que existir alguma forma de me expressar, de avisar que eu estava bem, que eu podia ouvi-los, que eu os amava e que me comprometia a mudar meu comportamento. Se fosse necessário, voltaríamos a ter nossa vida no interior – que saudade! Então, uma lágrima escorreu de meus olhos. Lembramos que Deus existia. O aviso foi dado. Sim, eu estava vivo. Sim, eu os amava. Sim, eu estava pronto para operar mudanças. Naquele momento, concentrava-me em poder abrir os olhos, renascer e enxergar o colorido da vida outra vez...

2 comentários:

  1. Esplêndido, Letícia! A gente está cada vez mais desumanizado no meio de tanta gente, quem diria! Somos um insignificante número nas estatísticas (mesmo aqueles que possuem dinheiro). A solidão é intrínseca, coletiva mas sentida profundamente no nível individual. Eu tenho dito para as minhas (duas) filhas: percisamos de união e fraternidade e sabem por que? Quando velhos, se temos dinheiro, todos querem se ver livre de nós para ficarem com alguma herança. Se somos pobres todos querem se ver livres de nós para que não venhamos a dar trabalho. Esta é uma das tantas opressões a que estamos submetidos. Meu abraço. paz e bem.

    ResponderExcluir
  2. Olá Cacá sumido!
    Obrigada pelo "esplêndido"!
    E, acho que nem preciso comentar, você foi perfeito na análise do conto e complementou a ideia do tema, sem contar que mais uma vez concordo contigo.
    Abraço.

    ResponderExcluir

Então, o quê você me diz?