Era noite, não lembro a hora exata. O céu estava diferente, um pouco alaranjado, com misturas de azul e vermelho em meio ao negro. Dava para ouvir o som do vento, muito forte naquele dia, me fez arrepiar. As árvores balançavam mais que o normal. Parecia realmente uma noite de tempestade, com direito a filmagem para filme baseado em fatos reais.
Eu levantei e me aproximei da sacada, pensei que seria um dia perfeito. Hesitei ao ouvir barulhos, até que percebi que vinham do apartamento de cima. Eram correntes de arrastando, quem sabe alguém vindo me visitar. A porta do armário fechou, talvez tenha sido a força do vento - ou não. Resolvi abrir todas as janelas, deixar o vento carregar consigo tudo o que conseguisse, bagunçar o que fosse possível, até mesmo porque, nada estava mais bagunçado que minha mente.
Caminhei pelo apartamento, sim aquele em que passei a maior parte da minha vida, mais momentos ruins do que bons, mas foi nele que vivi, se é que pode dizer que eu vivi algum dia. Um sentimento nostálgico me contaminou, uma pontinha de medo surgiu quando visualizei as fotos espalhadas pela sala, pelo quarto. Por que eu estava sempre sorrindo? Eu nem era tão feliz assim. Por dentro algo se remexia, uma ânsia de vômito me levou ao banheiro, aah, agora não é hora disso, eu pensei. Pedi forças a alguma divindade, nem sabia mais para quem apelar, se estivesse alguém perto de mim que me desse forças, era o que eu mais precisava naquele momento.
As folhas espalharam-se para todos os lados, nem eu sabia de onde surgira tantas, deve ter sido da vida de estudos que eu nunca consegui largar. E, por que tantas coisas guardadas? Por que não me desapegar? Naquela hora decidi abrir os baús antigos, as caixas, ir rumo ao quartinho da bagunça para me desfazer de tudo. Comecei pelas caixas maiores, no fundo eu já sabia que elas seriam mais fáceis, tinham menos objetos de grande importância. Abri a primeira, repleta de cadernos do início da minha vida escolar, a letra ainda era meio desordenada e eu escrevia somente a lápis, lembrei-me do quanto sonhava com o dia em que fosse “maior” e estaria apta a escrever com caneta. Joguei fora. Abri a segunda caixa, eram materiais do ensino médio. Listas e mais listas de exercícios, preparatório para o vestibular, que época foi aquela! Melhor esquecer. Tudo para o lixo. Abri outra, coisas da faculdade, olhei para o lado e tinha mais um monte, tudo da época da faculdade. Senti-me sufocada. Nem abri, tudo para o lixo. Andei em direção às pequenas, às caixinhas delicadas, aquelas que eu já sabia, iriam ser dolorosas, mas, era necessário, importante não deixar vestígios. Comecei por uma com fotos em excesso, era da infância. Como pode nascer um bebê tão lindo e sorridente e crescer um adulto tão feio e amargurado? Decidi que as fotos ficariam, alguém poderia querer. Abri outra, essa era de cartas. Quantas quartas! Recadinhos da época de escola, de faculdade, de alguns momentos. Esses foram difícil decidir o que fazer, resolvi trancá-los no cofre, não poderiam ir para o lixo nem ficar disponível para qualquer um. Fui abrindo as caixas e vendo o que carregava comigo pela vida, o que deixava pelo caminho, o que esquecia de vez, o que realmente marcou minha vida, o que foi passageiro e o que poderia ter sido mudado. Muita coisa foi para o lixo, mas, fracassei, de alguns conteúdos não consegui me desapegar. Finalizei mais essa etapa. Canalizei minhas forças, esqueci de tudo o que poderia, simplesmente apaguei da memória e deixei minha mente em branco, sem pensamentos atormentadores, sem lembranças ou memórias.
Voltei para a sala. Apaguei todas as luzes e fui rumo a sacada novamente. Mas, uma súbita vontade de caminhar me deteve. Antes era preciso caminhar. Nesse momento olhei no relógio, era meia-noite em ponto. Desci pelo elevador, tudo silencioso, vazio. O porteiro com sua mini televisão ligada e tirando um cochilo sentado na cadeira. Consegui abrir o portão sem incomodá-lo, era até melhor, assim uma pessoa a menos veria. Saí pela rua, calma, silenciosa, poucos carros passando, rápidos. Os prédios pareciam adormecidos, poucas luzes acesas, ninguém nas sacadas. Alguns cachorros começaram a dividir a calçada comigo. Fui andando, para onde o vento me levasse, só não queria que ele me fizesse re-encontrar o que ele já tinha levado do meu apartamento. Nada de regresso ao passado. Andei bastante, mas, senti outra necessidade súbita, de voltar, de subir e ir até a sacada, não tinha jeito, era realmente necessário.
Comecei a voltar. O vento mudou de rumo, ficou mais forte, os assobios mais altos. As árvores estavam a pouco de serem arrancadas da terra. Percebi maior movimento nos apartamentos, as pessoas estavam fechando suas janelas, suas sacadas. Fui voltando. Parei. Repentinamente percebi que alguém estava me vendo, pior, estava me vigiando. Voltei-me para a rua que cortava meu prédio. Atrás de um container havia um homem. Os postes mal iluminavam a rua, mas percebi que ele usava camisa e calça escuras, e, me olhava fixamente. Eu também não conseguia desviar meu olhar do dele. Foram poucos segundos que pareceram uma eternidade. Ele me passava alguma mensagem, queria me dizer algo. Ainda não compreendo como foi possível que, sem abrir a boca, nos comunicássemos. Ficamos assim, parados, de lados opostos, a uma distância considerável, mas, que não foi obstáculo à nossa comunicação, à nossa troca de olhares. Foi intenso. Sentia-me como se tudo o que se passava comigo, tudo o que eu sentia, tudo o que eu pensava, tudo o que eu percebia ele via. Sentia-me aberta, ele sugava tudo de mim. O cachorro latiu. A atenção foi desviada. Subi até o meu apartamento. Entrei diretamente para o meu quarto, comecei a limpar, organizar, em poucos minutos estava um quarto digno de gente normal - ou quase. Fui para a cozinha, coloquei água para ferver, ia cozinhar uma massa. Comecei a fechar as janelas, mesmo que o vento já tivesse diminuído sua força. Fui ao quartinho, ordenei as caixas restantes, guardei o que tinha para guardar e joguei fora o necessário. Tranquei a porta. Fui até a sala, liguei o som, juntei os papeis, coloquei tudo em seu devido lugar. E decidi que o cofre ficaria trancado por muito tempo.
Sentei-me para descansar. Parei. Estava de frente à sacada. Levantei. Dei três passos. Hesitei. Não, era preciso. Fui até a beira. O vento renovou suas forças e eu o senti tocar a minha pele, mas não era uma sensação ruim, era boa, muito boa, me sentia renovada, limpa, seu assobio era música. Abri os olhos. Vi o homem, aquele mesmo homem. O cachorro latiu, o homem abaixou da testa um óculos escuro, de suas mãos surgiu uma bengala com a qual ele tateou a sua frente e foi caminhando, vagarosamente, creio que na direção do vento...
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