quinta-feira, 21 de outubro de 2010

A Madrugada



Ela virou a rua. Aumentou o passo. Não adiantou, começou a correr. O salto estava incomodando, a saia estava muito apertada. Não conseguia ir mais depressa. A respiração já estava ofegante. Muito menos podia olhar para trás, mas sentia e, cada vez mais, ele se aproximava. E ao contrário dela, estava a passos lentos, calmo, tranqüilo, como se soubesse que no fim iria conseguir tudo o que queria de qualquer jeito.

Precisava encontrar uma solução. Não conseguia raciocinar, só pensava em correr, correr, se esconder, aonde? A rua estava escura. O asfalto estava repleto de buracos. Não dava para parar e tirar o salto. Deveria continuar assim. Os moradores já estavam dormindo, lógico, já era madrugada.

Por quê? Por quê? Era a pergunta que mais pairava sobre sua mente. Por que decidiu ir sozinha à noite? Por que ele estava atrás dela, justo dela? Por que não ouviu os conselhos da irmã? Para essa ela sabia a resposta, era simples, a irmã não aceitava a modernidade, o que tem demais em uma mulher ir sozinha ao cinema na última sessão do dia? A irmã tinha inveja dela, pois era uma mulher bem sucedida, independente em todos os sentidos e, principalmente, por não depender de homem algum, muito menos de um homem como o marido que ela tem em casa, prepotente, arrogante, rabugento, nojento e que ainda por cima fica de quatro pela irmã da mulher. Melhor continuar solteira, sozinha, nenhum homem nojento daquela cidadezinha merecia tê-la. Disso ela tinha certeza.

Continuou. Estava cansada. Corria. Ainda faltavam quatro quarteirões para chegar em casa. Não iria conseguir. Melhor seria desistir, esperar por ele. Não. Não poderia fazer isso com ela mesma. Tinha que terminar isso tudo lutando, nem que ela fosse a vítima, não poderia se entregar facilmente. Na verdade, ela nunca se entrega facilmente. Desde a infância sempre batalhava pelo o que queria e nunca desistia, era persistente, determinada e se orgulhava disso. Ao contrário das outras mulheres da cidade, ela não se casou, não constituiu família, mas se graduou, trabalhou fora e fazia o que bem entendesse, sem depender de mais ninguém.

Corria. Ele estava cada vez mais perto. Já sentia o cheiro do cigarro que ele acabara de acender. Horrível. Sempre evitou homens – e pessoas em geral - fumantes. Não conseguia se relacionar muito bem com eles, e o cheiro do cigarro lhe fazia mal, muito mal. Lembrou-se da vez em que namorou o carinha da farmácia, embora ele fosse um cara bonito, bem apresentável, estável financeiramente, nunca soube o real porquê de namorar ele, era infantil, bobão, um completo idiota, e ainda por cima, fumante. Acho que ela tinha atração pelos caras que menos a mereciam, só pode, ou então era a inveja que a mulherada da cidade sentia dela e faziam macumba, magia negra para que ela sempre se desse mal. Nunca namorou por muito tempo. Todos diziam que ela era linda, interessante, e tudo o mais, mas no fim, só queriam mesmo outras coisas dela. A viam como um objeto sexual. Sem contar os vários homens casados, que participavam do encontro de casais da igreja, freqüentavam festas, reuniões da alta sociedade, tinham belas mulheres e família em casa e mesmo assim iam atrás dela, quanto hipocrisia e falsidade. Ela, com certeza, os ignorava, não dava moral, e mesmo assim, sempre aparecia um. Entretanto, nunca aparecia um solteiro, livre, desempedido, bom partido, interessante, inteligente, estável, de caráter que se interessasse por ela ou que permanecesse numa relação estável. Não, ela sempre teve azar com relações amorosas. E ela nem era muito exigente, poderia relevar algum “defeito de fábrica”, poderia tentar se adaptar ao jeito do novo amor, na verdade, bastava amá-la, a única exigência era essa, queria pelo menos uma vez sentir-se amada. Mas não, para os homens não deveria existir amor entre eles e ela. Como sempre, a procuravam para obter o além. Para simplesmente satisfazer um desejo, o desejo de tê-la por uma noite, espalhar a toda a cidade e contar vantagem aos amigos, apenas um ato de perversão, pois a moral que lhes era imposta não deixavam que os desejos sexuais fossem atendidos em casa. Os casados então, queriam satisfazer os desejos que as mulheres em casa não proporcionavam, queriam loucuras, e confundiam a aparência com o interior, não acreditavam que ela era mulher para casar. Todos se enganavam, ela não era uma garota de programa. Só porque ela se veste diferente das outras, com roupas mais justas, mais curtas ou decotadas, só porque ela não vai à missa todos os domingos, só porque ela ingere bebida alcoólica, só porque usa maquiagem diariamente, só porque ela estudou, morou fora e teve amigos homens, não quer dizer que seja uma mulher fácil, pra qualquer um que apareça e muito menos mulher pra ser humilhada e apenas satisfazer os desejos ocultos dos homens mais abomináveis possíveis. Sentiu nojo. E sentir nojo fazia parte do cotidiano dela, devido aqueles olhares direcionados que a despiam, dissecavam e suspiravam de desejos.

 Agora ela ouvia passos mais rápidos atrás dela. Ela tentou correr mais, mas era em vão, o salto e a saia apertada não deixavam. Nenhuma casa tinha a luz acesa. Nem poderia tocar a campainha, até que aparecesse alguém, se aparecesse, ele já teria a alcançado. E no fundo, sabia que ninguém iria atendê-la, muito menos numa hora dessas. Naquela cidade desde a adolescência ela nunca fora bem aceita. Não frequentava a casa das amigas, se bem que, praticamente não tinha amigas. A hipocrisia, o atraso, o conservadorismo, a moralização e a repressão estavam encrustados nas mentes daquelas pessoas ignorantes e medíocres da cidade.

Faltavam dois quarteirões. Sentia-se cansada. Não sabia se agüentaria mais. Ele estava cada vez mais próximo, já podia sentir o perfume. Não olhava pra trás, apenas corria. Prendeu o cabelo, a sudorese estava insuportável. Continuou. Correu. Não agüentou mais. Olhou pra trás e se espantou com a figura que enxergou. Assustada, paralisou, não sabia mais o que fazer. Seu corpo não reagia a sua mente. Sabia que tinha que continuar a correr, mas nem o dedo mindinho da ponta do pé se movia. Ele a alcançou.

Os dois se olharam por um breve período. Ele ria ironicamente. Ela começou então a chorar. Ele se aproximava cada vez mais. Encostou as mãos sobre os ombros dela, foi subindo até o rosto, começou a acariciá-la. A essa altura ela já estava pedindo para que parasse, sem entender com clareza o que estava a acontecer. Mas ele persistiu.

Eram 6h da manhã. A cidade inteira estava em volta do corpo. Os seios a mostra. A saia rasgada. O salto quebrado. A maquiagem borrada. Todos assustados. No interior das mentes mais mundanas os homens diziam “que desperdício, mas é isso que dá ser fácil assim, só se fazia de difícil para mim, mais uns dias e eu a teria em minhas mãos” e as mulheres completavam “mulher fácil, garanto que estava no "ponto", nisso que dá ser errada, ir contra as regras, bem feito!”, "tá vendo, sabia que isso ia acontecer, nem à missa ia!". Entretanto, no fundo os homens sentiam-se impotentes por não ter conseguido tê-la, sentiam-se fracassados e não queriam deixar transparecer que foram incapazes de "conquistá-la". As mulheres sentiam inveja, analisavam o corpo da vítima detalhe por detalhe a fim de encontrar um defeito, pequeno que fosse, para aumentar o ego e satisfazer a vaidade. 

As pessoas rodeavam o Padre, fazendo perguntas e mais perguntas. Ele permanecia calado, tinha sido o primeiro a encontrá-la.

2 comentários:

  1. Olá Leticia!

    Gostei do seu blog: É forte!

    Passarei por aqui mais vezes...

    http://omundoparachamardemeu.blogspot.com/

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  2. Oiie!
    Obrigada pelo carinho e elogio, passe por aqui mais vezes mesmo, te aguardo, ok?!
    Beijinho
    :)

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Então, o quê você me diz?